A partir de 11 de setembro de 2001, quando cerca de 3.000 pessoas morreram nos ataques às torres gêmeas em Nova York, autoridades internacionais descobriram que havia um gargalo nos mecanismos de combate à lavagem de dinheiro. Junto ao maior centro comercial do mundo, ruiu a ilusão de que os sistemas internos de prevenção e detecção dos bancos norte-americanos bastavam para neutralizar qualquer tipo de ameaça.
Instituições e empresas do mercado financeiro fortaleceram políticas de compliance (conjunto de normas de proteção) e aumentaram a vigilância em relação às transações que envolviam remessas de dólar ao exterior. Era o fim de um ciclo de facilidades para as quadrilhas de doleiros, os operadores de câmbio clandestino cujos serviços são úteis a diversas atividades criminosas, como a corrupção e o tráfico de drogas e armas.
Os doleiros passaram então, como alternativa, a explorar novos mercados e, sobretudo, a fugir do cerco dos bancos americanos. No Brasil, muitos doleiros deixaram de utilizar contas pessoais (as “contas de passagem”) e passaram a abrir empresas de fachada, com sede em países de legislação frágil e contas vinculadas a instituições de nações asiáticas.
“Até o início dos anos 2000, esse mercado era muito demandado. Eram pessoas [doleiros] que tinham contatos no exterior, que faziam o câmbio como atividade-fim da vida. Era uma ‘profissão doleiro’, mas na concepção de um mundo sem internet e de comunicação frágil”, explicou o procurador da República Rodrigo Timóteo, membro da força-tarefa da Lava Jato no Rio.
“São pessoas que têm dupla nacionalidade, por exemplo, ou que têm contatos no exterior. Com isso, elas conseguiam abrir contas no exterior, que eram as contas de passagem, para fazer o dólar-cabo [transação ilícita de compra e venda de moeda estrangeira]. Dessa forma, não havia dependência de terceiros. O doleiro depositava da própria conta dele na conta indicada pelo cliente”, disse.
Na esteira da necessidade de sofisticação, os operadores de câmbio também instituíram novas frentes de atuação e começaram a atuar como “compensadores”.
É nesse contexto que a quadrilha encabeçada por Dario Messer, foragido da Justiça no Brasil e no Paraguai, tornou-se uma referência. O grupo atendia clientes como políticos, empresários, artistas, jogadores de futebol, entre outros.
Casando interesses
O sistema de compensação é feito da seguinte forma: o interessado entrega ao doleiro uma certa quantia em espécie na moeda nacional. Em vez de remeter o dinheiro ao exterior por meio do sistema financeiro formal, o operador aciona terceiros que possam depositar, em dólar, os valores demandados em uma conta indicada pelo cliente.
Em seguida, o agente responsável pelo depósito no exterior –geralmente outros doleiros ou empresas que demandam reais em espécie– é “compensado” e recebe do operador na outra ponta uma determinada quantia em moeda nacional.
“O doleiro passou a ser um intermediador, um compensador de contas. O sujeito me dá dinheiro aqui e quer um depósito lá fora, por exemplo. Só que eu não vou depositar da minha conta. Eu vou arranjar uma pessoa que queira reais em espécie aqui [no Brasil] e peço para ele depositar [em dólar] na conta que a pessoa [primeiro cliente] indica no exterior”, disse Timóteo.
A remuneração dos doleiros consistia em um pequeno percentual de cada transação, que eles chamavam de “fee”. “Era relativamente baixa. Mas como eles movimentaram quase US$ 1 bilhão, é só você ir juntando.”
A dinâmica criminosa só foi descoberta a partir das delações premiadas de dois doleiros investigados na Lava Jato e que trabalhavam para Messer: Vinicius Claret, o “Juca Bala”, e Cláudio Barbosa, o “Tony”. Ambos deixaram a cadeia no começo de maio, pois já haviam cumprido o tempo de reclusão fixado nos acordos de colaboração.
Com base nas informações prestadas pela dupla, Polícia Federal, MPF (Ministério Público Federal) e Receita Federal montaram a Operação Câmbio, Desligo, etapa da Lava Jato que levou à prisão mais de 30 doleiros. Na última quarta-feira (6), quase um mês depois da operação, 62 pessoas foram denunciadas à Justiça pelos crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e pertinência à organização criminosa.
Entre os acusados estão Messer, Juca Bala e Tony e um dos principais clientes da quadrilha de doleiros, o ex-governador fluminense Sérgio Cabral (MDB) e empresas como Odebrecht e JBS. Segundo a Lava Jato, de 2010 a 2016, o esquema de Messer movimentou, no total, mais de US$ 1,6 bilhão –R$ 5,9 bilhões em valores atualizados.
Doleiros expostos a partir de 2001
Os operadores que aceitaram colaborar com a Lava Jato afirmaram que, a partir de 2001, com a revisão das políticas de segurança do sistema financeiro internacional em face do terrorismo, muitos doleiros “começaram a ficar expostos”.
O procurador Rodrigo Timóteo explicou que, de acordo com informações dos irmãos Marcelo e Renato Chebar –dupla de doleiros que trabalhava diretamente para Cabral–, alguns bancos começaram a expulsar donos de contas com movimentações suspeitas.
“Eles [irmãos Chebar] disseram que não dava para ficar exposto e movimentando um grande volume de dinheiro de uma conta só. Eles tinham, por exemplo, uma conta no Israel Discount Bank, um banco praticamente só de judeu. Lá entrava e saía muito dinheiro. O banco chegou e perguntou: ‘por que você está depositando para um terceiro que não tem nada a ver com o seu ramo de atividade?'”, contou.
“Era isso: recebia aqui e depositava ali toda hora. Nisso, eles foram convidados a sair de alguns bancos porque chamaram atenção do [setor de] compliance“, explicou.
O procurador da Lava Jato também disse que, segundo os delatores, inúmeras contas começaram a surgir na Ásia no início dos anos 2000, em especial na China, em Taiwan, em Hong Kong e em Singapura. Dois fatores teriam contribuído para isso: os países estavam em alta no comércio exterior e teriam legislação mais frágil em relação às remessas de dinheiro.
“A China passa a ter uma relevância maior porque existe um fluxo de capital intermitente, e o país entra como player do mercado de exportação, principalmente a partir dos anos 2000. Como já tem dinheiro circulando, fica muito mais difícil fazer a fiscalização”, declarou.
O Brasil não é para amadores.